A dor que insiste em se repetir – e o silêncio que nos condena
Mudamos tanto em tecnologia, avançamos em medicina, ciência, conectividade. E mesmo assim, a fome continua a ter rosto de criança.

Nesta semana, uma imagem me atravessou. Uma mãe segurando seu filho nos braços. Uma criança magra, com os ossos das costas saltando pela pele fina demais para esconder a dor. A cena foi registrada na Faixa de Gaza e acompanhava uma manchete sobre a fome extrema enfrentada pela população civil.
Fiquei paralisado. Porque, ao ver aquela imagem, não vi apenas Gaza. Vi o passado. Vi os anos 1980, quando eu, ainda menino, assistia na televisão às imagens da Etiópia, devastada pela fome. Crianças com olhares perdidos, barrigas inchadas de desnutrição, moscas sobre os olhos, e o mundo que assistia — como hoje — quase em silêncio.
Mais de 40 anos se passaram. Mudamos tanto em tecnologia, avançamos em medicina, ciência, conectividade. E mesmo assim, a fome continua a ter rosto de criança. As vítimas seguem sendo os inocentes. E nós seguimos, muitas vezes, incapazes de sentir verdadeiramente o que tudo isso significa.
“A desumanização do outro é sempre o primeiro passo para a violência”, escreveu o filósofo polonês Zygmunt Bauman. E talvez estejamos todos mergulhados em um processo profundo de desumanização.
A questão aqui não é de que lado você está. Não quero entrar na disputa sobre quem tem razão em conflitos geopolíticos complexos. Meu incômodo vai além disso. É sobre como conseguimos ver cenas como essa — e seguir.
Seguimos navegando pelas redes sociais, distraídos por vídeos curtos, debates rasos, memes e filtros. Nos entorpecemos de dopamina, likes e indignações seletivas. Perdemos a capacidade de contemplar o sofrimento real.
“Nada é mais cruel do que a indiferença”, escreveu Albert Schweitzer, médico e filósofo que dedicou a vida ao trabalho humanitário.
“Não é sinal de saúde estar bem ajustado a uma sociedade profundamente doente”, disse Krishnamurti.
Olhamos para o sofrimento como se fosse ficção, mais um conteúdo entre tantos. E nesse processo, talvez estejamos, pouco a pouco, perdendo a nossa humanidade. Ou como escreveu Bertolt Brecht:
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem.”
A fome de hoje é a mesma de décadas atrás. Mudam os lugares, mas os rostos são sempre os mesmos: crianças.
Essa repetição não pode ser encarada como normal. Não podemos aceitar que as guerras sempre sacrifiquem os mais frágeis. Não podemos seguir em frente como se fosse só mais uma imagem, mais uma notícia, mais um dia.
É tempo de parar e pensar. Que tipo de sociedade estamos construindo? Que humanidade é essa que aceita ver crianças morrendo de fome e ainda assim continua a rolar a tela do celular como se nada fosse?
Essa coluna não tem respostas prontas. Só um apelo: que a dor do outro ainda nos toque. Que ainda sejamos capazes de sentir. De olhar. De não nos tornarmos cúmplices pelo silêncio.
Se a humanidade estiver mesmo perdendo, que não sejamos nós os que entregam a batalha.

Sobre o autor
Éder Luiz é jornalista com mais de 30 anos de experiência em rádio, TV e plataformas digitais. Fundador do portal Éder Luiz Notícias, atua também como consultor e mentor em comunicação, conectando informação, história e propósito em cada conteúdo que produz.
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